Médica relata experiência de acompanhar pacientes em processo de morrer e ensina: “A morte é um dia que vale a pena viver” | Sextante
Médica relata experiência de acompanhar pacientes em processo de morrer e ensina:   “A morte é um dia que vale a pena viver”
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Médica relata experiência de acompanhar pacientes em processo de morrer e ensina:
“A morte é um dia que vale
a pena viver”

Embora inevitável, a morte ainda é um tabu. Sobre ela, para além da aspereza diante da despedida, prevalece certo mistério. Sim, a morte é um enigma, mas também é “um dia que vale a pena viver”. A frase, impactante, dá nome ao livro escrito por Ana Claudia Quintana Arantes, médica que cuida de pessoas em […]

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Embora inevitável, a morte ainda é um tabu. Sobre ela, para além da aspereza diante da despedida, prevalece certo mistério. Sim, a morte é um enigma, mas também é “um dia que vale a pena viver”. A frase, impactante, dá nome ao livro escrito por Ana Claudia Quintana Arantes, médica que cuida de pessoas em processo de morrer. É um trabalho delicado, talvez ainda pouco conhecido, mas que busca, entre outras coisas, desvincular esse momento da dor. “Durante a faculdade, quando via alguém morrendo em grande sofrimento (e, num hospital, isso acontece quase sempre), eu perguntava o que era possível fazer, e todos diziam: nada. Isso não descia. Esse ‘nada’ ficava engasgado no meu peito, chegava a doer fisicamente, sabe? Eu chorava quase sempre. Chorava de raiva, de frustração, de compaixão”, recorda.

Apesar dos incontáveis avanços, a medicina – aos olhos da médica em formação – falhava justamente numa das fases mais delicadas, quando a vida como a conhecemos aos poucos se esvai. É a concretização da finitude, a última tensão com o tempo. É espantoso constatar que a faculdade fale tão pouco sobre a morte, mas essa é a ponta de uma reflexão mais profunda, detalhada em “A morte é um dia que vale a pena viver”.

Por meio de leituras e conversas, Ana Claudia descobriu um caminho mais humanizado, os Cuidados Paliativos, que, segundo a  Organização Mundial de Saúde (OMS), “consistem na assistência, promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e de seus familiares diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e do alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais”. Esse tem sido o foco da trajetória profissional da médica.

Quando a progressão da doença atinge níveis elevados, o valor dos Cuidados Paliativos fica mais evidente. A dimensão humanizada é constantemente lapidada, já que a habilidade técnica do médico – avaliar histórico clínico, escolher remédios e interpretar exames – é apenas parte de um processo muito mais complexo, que pressupõe a escuta empática e a atenção dedicada também à família do paciente. Muitas pessoas distorcem a prática e pensam que Cuidados Paliativos é sedar o paciente e esperar a morte chegar. Um equívoco. Tampouco é praticar eutanásia. O livro fala de bem-estar e conforto apesar das engrenagens perversas das doenças.

“A capacidade de olhar nos olhos das pessoas de quem cuido e de seus familiares, reconhecendo a importância do sofrimento envolvido em cada história de vida, nunca pode acontecer no espaço virtual de modo automático. Preciso manter uma atenção plena em cada gesto e ser muito cuidadosa com minhas palavras, com meu olhar, com minhas atitudes e, principalmente, com meus pensamentos”, frisa Ana Claudia, que lembra histórias vivenciadas com seus pacientes.

A médica nos lembra que uma pesquisa realizada em 2010 pela The Economist colocou o Brasil como o terceiro pior país em relação à qualidade de morte. Em 2015, ficamos em 42° lugar. A conclusão, ela prossegue, é que a sociedade brasileira – e isso inclui os médicos, claro – não está preparada para conduzir um processo de morrer mais atento e humanizado em seus pacientes. Essa verdade se torna mais angustiante quando se leva em conta que um milhão de brasileiros morrem a cada ano, sendo que 800 mil de mortes decorrentes de doenças crônicas, degenerativas e câncer, segundo consta no livro.

Ana Claudia Quintana conversa com Jout Jout sobre vida, morte, medicina e cuidados paliativos.

“Um dia seremos parte desta estatística, e o mais doloroso é que nossos amados também”, ressalta Ana Claudia. É uma morte cercada de sofrimento que desejamos para nós e para aqueles que amamos? Certamente não. Não se deve desejar isso a ninguém. A discussão acerca da qualidade de morte acerta em cheio a deficiência do estado em oferecer saúde digna à população. Da mesma forma, o contexto dos Cuidado Paliativos reforça um chamado para que possamos olhar para as nossas vidas com mais atenção e que essa marca se estenda àqueles que nos cercam. São princípios da compaixão e da empatia.

A conversa sobre a morte deságua na preciosidade que é experimentar o tempo e viver a vida. É essa a verdade que norteia a escrita de Ana Claudia em sua defesa pela vida plena. Ela provoca aqueles que dizem temer a morte e ainda assim se apressam em encontrá-la bebendo demais, fumando demais, reclamando demais, trabalhando demais. O ensinamento ecoa: “Podemos tentar acreditar que enganamos a morte, mas somos ignorantes demais para tal feito. Não morremos somente no dia da nossa morte. Morremos a cada dia que vivemos, conscientes ou não de estarmos vivos. Mas morremos mais depressa a cada dia que vivemos privados dessa consciência. Morremos antes da morte quando nos abandonamos. Morreremos antes da morte depois da morte quando nos esquecerem”.

Entrecortando os capítulos, o livro apresenta frases, citações de músicas e trechos literários que abordam a morte e o processo de morrer. Para encerrar o texto, destaco a canção “Não tenho medo da morte”, composição de Gilberto Gil citada por Ana Claudia.

Se ficou interessado no tema, uma dica: “A morte é um dia que vale a pena viver”  é um desdobramento de uma palestra feita ao TED em 2012, com quase dois milhões de visualizações. Assista a inspiradora fala da médica aqui.

Este post foi escrito por:

Filipe Isensee

Filipe é jornalista, especialista em jornalismo cultural e mestrando do curso de Cinema e Audiovisual da UFF. Nasceu em Salvador, foi criado em Belo Horizonte e há oito anos mora no Rio de Janeiro, onde passou pelas redações dos jornais Extra e O Globo. Gosta de escrever: roteiros, dramaturgias, outras prosas e alguns poucos versos estão em seu radar.

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