Por que é tão importante falarmos sobre a morte? | Sextante
Por que é tão importante falarmos sobre a morte?
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Por que é tão importante falarmos sobre a morte?

Pioneira na medicina paliativa relata experiências no acompanhamento de pacientes à beira da morte e mostra como o conhecimento é capaz de tornar o fim da vida menos sofrido

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Pioneira na medicina paliativa relata experiências no acompanhamento de pacientes à beira da morte e mostra como o conhecimento é capaz de tornar o fim da vida menos sofrido

Precisamos falar sobre a morte descomplica e humaniza a conversa sobre o tema, um persistente e rígido tabu social. Embora o destino de todos caminhe para esse mesmo desfecho – se a vida é imprevisível, a morte é certa -, é normal se esquivar do assunto. E quando ela chega, costuma trazer outras indesejadas companhias: o desespero, o despreparo e a desesperança, por exemplo. Preparar-se para ela, portanto, parece sinal de agouro, algo assustador para a maioria. Não precisa ser assim. O livro de Kathryn Mannix amplia o assunto e mostra que perspectivas mais otimistas e acolhedoras são possíveis mesmo diante de circunstâncias ruins. A despeito da tristeza ligada ao fim da vida, o livro trata a morte como uma valiosa oportunidade de reflexão.

Antes de mais nada, vale apresentar o trabalho da autora: a veterana Mannix é pioneira na medicina paliativa e, ao longo da carreira, ajudou a otimizar a vida de inúmeros pacientes em processo de morte. As histórias narradas por ela realmente aconteceram durante as quatro décadas dedicadas ao ofício, é importante salientar. Aos bons profissionais, atentos e dedicados como Mannix, cabe oferecer um pouco de paz de espírito aos pacientes. 

Uma nova ideia de morte

A cada relato, Precisamos falar sobre a morte nos aproxima dessa experiência de uma forma direta e sensível, numa tentativa de substituir as versões sobre a morte que vemos em filmes, séries e novelas, por vezes tão sensacionalistas. Com isso, a médica deseja tornar a morte mais familiar aos olhos do leitor, movimento essencial para fazer com que os rituais de despedidas sejam menos sofridos. “É um pequeno vislumbre de um fenômeno que ocorre todos os dias em algum lugar perto de nós”, sintetiza ela, que aponta: a consciência da finitude pode nos levar a ter uma vida melhor. “Cada dia que vivemos nos deixa mais perto da morte, e é justamente isso que faz cada um deles ser uma dádiva”.

É notável sua preocupação em retirar da morte o peso excessivo que a acompanha. Ao fim de cada seção, na qual apresenta aprendizados, Mannix traduz sua vivência num momento de reflexão. É a oportunidade de aconselhar os leitores.

Amor até o fim

“As pessoas associam a ideia de morrer à dor e à indignidade, o que poucas vezes se aplica”, afirma a médica. Para inibir essa associação repetitiva, o livro mune o leitor com conhecimento, instrumento necessário para acompanhar o processo, ciente do fim, sem perder a integridade.

Ela faz uma comparação com outra ponta da vida, quando mães e pais são orientados sobre todas as etapas que envolvem o parto. Mas essa mesma lógica não é replicada. “Discutir o que esperar durante o processo de morte e entender que é previsível e razoavelmente confortável traz consolo e apoio às pessoas à beira da morte e àqueles que as amam. Infelizmente, não existem muitas ‘parteiras’ experientes para nos explicar o processo da morte”. A autora também lamenta ao constatar que médicos e enfermeiros testemunham cada vez menos a morte natural, pois o trabalho está atrelado a um aparato tecnológico que distancia os profissionais de seus pacientes.

As histórias de pessoas em seus últimos momentos de vida preenchem as páginas do livro, mas não há morbidez aqui. Ao contrário. A perspectiva parece abotoada a um aprendizado que surge, neste momento mais que antes, tão potente e necessário. Mannix se revela em cada contato com os pacientes – dos mais jovens aos mais velhos -, surpreendendo-se com suas reações, histórias de vidas e reflexões, mas também enfrentando dilemas médicos. Em muitas passagens, ela traz suas relações familiares para exemplificar o desafio e a importância da morte ser inserida como pauta de conversas com filhos, pais e companheiros.  “Aqueles que cuidam de pessoas muito doentes às vezes também precisam desabafar. Isso nos mantém em harmonia e capazes de voltar ao trabalho no dia seguinte, para reassumir o posto e exercer nosso ofício”, ensina.

O tabu atrapalha o aprendizado

O medo de encarar uma conversa sobre morte está refletido na nossa linguagem: lançamos mão de uma série de eufemismos – “descansou” ou “fechou os olhos” – apenas para não mencionar as palavras derivadas de morte. A observação não é um capricho linguístico. 

Para Mannix, falar abertamente sobre o processo de morrer ajuda quem está morrendo a tomar providências na última etapa de sua vida e a preparar os entes queridos para o luto. Além disso, confirma a morte como algo natural. “Discussões claras afastam a superstição e o medo, permitindo que sejamos honestos uns com os outros em um momento no qual fingimentos e mentiras bem-intencionadas só conseguem nos distanciar, desperdiçando um tempo muito precioso”, ressalta.

Segundo a médica, a maioria das mortes acontece no final de um período de declínio de saúde e é resultado de doenças significativas e conhecidas. Ou seja, há certos padrões identificáveis. Assim, a pergunta que ela faz é mais contundente: Por que ainda ficamos despreparados?

Precisamos falar sobre a morte deseja que as histórias narradas ali se transformem em ações: refletir sobre a morte e falar sobre ela são etapas para se viver melhor. 

No livro, Mannix destaca passagens em que elabora um pensamento sobre o próprio ofício e sua relação com pacientes e familiares. A seguir, você confere cinco trechos:

Honestidade

“Pacientes e familiares só farão as melhores escolhas sobre o momento de aceitar o fim da vida se nós, médicos, formos honestos sobre os prováveis resultados dos tratamentos que temos a oferecer”.

Companhia

“A vigília em torno de um leito de morte é uma visão comum na medicina paliativa. Em algumas famílias, ela é serena; em outras, há rodízios e cuidados com os familiares, além das atenções com as pessoas à beira da morte; em outras ainda, há disputa por posições – o mais desamparado, o mais amado, o mais importante, o mais misericordioso. Em muitas há risos, conversas e reminiscências; outras são mais silenciosas, mais tristes, mais chorosas; em algumas há apenas uma vigília solitária; ocasionalmente, somos nós, os profissionais, que nos mantemos ao lado do leito porque nosso paciente não tem mais ninguém”. 

Más notícias

“Quando os médicos trazem más notícias, seria bom assegurar-se de que as pessoas certas estão presentes para ouvi-las, refletir sobre elas e apoiar umas às outras. Isso permite que as famílias compartilhem sua tristeza ou preocupação e evita isolar alguém na gaiola dos segredos solitários. Essas conversas difíceis podem ser um desafio em uma clínica movimentada ou em uma ronda pela enfermaria, mas evitá-las é um grande desserviço para o paciente e sua rede de apoio”

Arte de morrer

“A arte de morrer tornou-se uma sabedoria esquecida, mas cada leito de morte é uma oportunidade de restaurar essa sabedoria para aqueles que continuarão vivos, de modo que se beneficiem dela quando enfrentarem outras mortes no futuro. Inclusive a própria”.

Uma viagem

“A sensação de se aproximar da partida parece evidente para muitas pessoas à medida que a doença progride. Às vezes, porém, a metáfora da despedida é a única maneira de discutirmos a proximidade da morte. Ao longo da minha trajetória como médica, conheci pessoas que buscavam, perplexas, os passaportes, pediam a familiares indecisos que verificassem suas passagens e colocavam itens aleatórios em malas de viagem. Aprendi a não confrontar a ‘confusão’, e sim a participar da conversa para, por meio dela, discutir e oferecer conforto diante dessa sensação de partida iminente”.

Este post foi escrito por:

Filipe Isensee

Filipe é jornalista, especialista em jornalismo cultural e mestrando do curso de Cinema e Audiovisual da UFF. Nasceu em Salvador, foi criado em Belo Horizonte e há oito anos mora no Rio de Janeiro, onde passou pelas redações dos jornais Extra e O Globo. Gosta de escrever: roteiros, dramaturgias, outras prosas e alguns poucos versos estão em seu radar.

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