“Um carinho na alma”: memória, transformação e sabedoria na poesia de Bráulio Bessa | Sextante
“Um carinho na alma”: memória, transformação e sabedoria na poesia de Bráulio Bessa
POESIA

“Um carinho na alma”: memória, transformação e sabedoria na poesia de Bráulio Bessa

O cordel acolhedor de Bráulio Bessa ganha as páginas de “Um carinho na alma”. O novo livro reforça as marcas que o tornaram um dos escritores mais populares do país: para além das rimas, poemas com reflexões, afeto e humor.

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O cordel acolhedor de Bráulio Bessa ganha as páginas de “Um carinho na alma”. O novo livro reforça as marcas que o tornaram um dos escritores mais populares do país: para além das rimas, poemas com reflexões, afeto e humor. 

Pouco mais de um ano após Poesia que transforma, um dos grandes sucessos editorais de 2018, Bráulio Bessa confirma a força do seu cordel acolhedor em Um carinho na alma. O novo livro passeia pelo sertão das reminiscências que preenche a vida do poeta, marca também da sua obra anterior. A escrita em prosa, inflada de memórias, se liga aos versos, frutos de uma árvore tão robusta e frondosa quanto à vida daquele que escreve. Tanto lá quanto cá sobressai o afeto. A inspiração para o título veio de uma senhora de lenço na cabeça e cabelos brancos que, certa vez, o abraçou e disse: “Cada palavra sua é um carinho na alma da gente”. Aí também: afeto. A tenacidade está agora grafada na capa do livro. Não há elogio melhor para alguém como Bessa, cuja matéria de trabalho e devoção – a poesia – transforma e acarinha. Quem duvidaria disso? Ele jamais, pois foi, e é, alguém transformado e acarinhado pela poesia. Diariamente.

Um carinho na alma expande o terreno de Poesia que transforma. A favor deste lançamento, o tempo. Decerto, quem escreve é outro Bessa, mais experiente, acostumado às câmeras e aos fãs, cada vez mais numerosos.  Embora também seja o mesmo que lá pelos 14, 15 anos já se sabia poeta. Aos leitores antigos, os poemas novos trazem o sentimento inconfundível de familiaridade, o que faz com que uma página dê lugar à seguinte, num reconhecimento de uma escrita que faz bem e provoca calor. Afeto, né? Mas as surpresas florescem por aqui também. Há o humor, as invencionices, as ressignificações, os abraços possíveis entre as palavras de um e os olhos de outros. É interessante constatar que Bessa sempre ambicionou aproximar seus versos dos corações dos leitores, sem o receio de emocionar. 

“Quando sonhei e, acima de tudo, acreditei que seria possível me tornar escritor, eu imaginava que minha alma, através da minha poesia, viajaria o mundo ao encontro de muitos corações. Me via sentado numa rede na varanda, uma garrafa de café no chão, uma pequena máquina de escrever em cima de um tamborete, e no teco-teco de cada letra no papel, espalhar poesia pelo mundo. Achei que minha alma viajaria muito, mas meu corpo não”. A realidade se confirmou parcialmente, porque seu corpo de poeta viaja bastante para dar conta das almas tocadas por seu trabalho. O filho de Alto Santo – como se apresenta em “Galope à beira-mar”, poema de abertura – está mais arraigado ao Brasil do que antes, embora sua raiz permaneça sob o sol do Ceará onde nasceu.  

Do primeiro ao último poema, Bessa se volta ao cotidiano e o redesenha com mãos brandas. Como um amigo, ele aconselha, aponta brechas onde antes se via apenas um muro impenetrável. Assim, recusa o desfecho triste. “Quando a vida lhe cobrar/ uma grande decisão,/ escute um conselho amigo,/ aceite uma opinião,/ mas antes de decidir/ decida também ouvir/ a voz do seu coração”, inicia ele em “Sua voz”. Nos versos, a voz do poeta é, sobretudo, de alento. Na prosa, a reconstrução de um passado que ajuda a entender o presente de Bessa se destaca. A ciranda de lembranças dos tempos de menino-poeta inclui mãe, pai, avô, avó e irmãos, a quem sempre cuidou como pai. O leitor se torna da família. Explora a vida do escritor ao mesmo tempo que tem nas mãos o produto literário dessas vivências. Vivências transformadas em poesia. Sim, a poesia transforma e acarinha. São pares inerentes da labuta astuta de Bessa, presença recorrente no “Encontro com Fátima Bernardes”, da TV Globo.

“Todo coração aberto/ se torna um abrigo quente/  capaz de caber mais gente/ que areia no deserto. Quem tem amigos por perto/ não dá um só passo só./ Quem não tem, eu sinto dó,/ pois o poder de um abraço/ faz sorriso virar laço/ e qualquer dor virar nó”, ensina o poeta em “Sorriso é laço. Dor é nó”. Bessa acredita que sua poesia é instrumento de Deus e, mais de uma vez, ressalta a crença inabalável de que ela “pode curar almas e salvar vidas”. Quem duvidaria disso? Ele jamais.

Em prosa, ele recorda o efeito do que escreve sobre pessoas tão diversas: “Quando eu pego as palavras, isso é uma coisa. Mas quando alguém desiste de cometer suicídio por causa de algo que eu disse, aí então não fui eu mesmo, não. Alguém na espiritualidade sabia que essa pessoa precisava ouvir aquelas palavras, de alguma forma me usou para escrever, e deu um jeito de fazer chegar até ela. Eu não vou tentar entender e muito menos vou tentar explicar, porque senão eu endoido. O que eu peço é que continue mandando. Eu tento honrar, continuar buscando isso. A intenção é atingir espiritualmente as pessoas”. 

Os leitores confirmam que a missão está sendo cumprida.

Como Bessa escreve, “tem livro que a gente lê. Tem livro que lê a gente”. “Um carinho na alma” é um pouco dos dois. 

Para encerrar, o poema  “Falando com Deus”. 

“Se eu falasse com Deus
iria lhe perguntar: 
Se temos terra sobrando, 
se o planeta é nosso lar, 
por que tanta gente sofre 
sem um teto pra morar? 

Tiraria outra dúvida
 que me causa aflição: 
Se a natureza foi feita 
sem nenhuma imperfeição, 
por que chove mais no mar 
que nos solos do sertão? 

Se o Senhor ensinou 
que irmão ajuda irmão, 
por que, quando o outro cai 
e pede ajuda no chão, 
tem mais gente pra pisar 
do que para dar a mão? 

Também lhe perguntaria 
pra ele me responder: 
Por que tanta gente boa 
vem pro mundo só sofrer 
e tanta gente ruim 
é feliz sem merecer? 

Se o homem foi criado 
semelhante ao Senhor, 
nascendo livre do ódio 
e cheio do puro amor, 
por que tanta guerra mata 
em nome do Criador?  

Se chegamos neste mundo
sem trazer nada na mão,
por que será que dinheiro
se tornou obsessão,
se na viagem de volta
ninguém leva um só tostão?

Ainda sobre dinheiro
também quero perguntar:
Se por acaso existisse
algum jeito de levar,
me responda, Deus: no céu
teria onde gastar?

Se o Senhor fez o homem
do jeito que desejou,
construiu nosso planeta,
nos deu e não nos cobrou,
por que é que o próprio filho
destrói o que o Pai criou?

Ainda perguntaria
se ele não se aborrece
sabendo que a maioria
dos seus filhos lhe esquece
e quando pouco se lembra
pede mais que agradece.

Se eu fizesse mil perguntas,
as mil Deus responderia
com todo amor que ilumina
a luz da sabedoria.
Mesmo assim não tenho pressa
e espero que essa conversa
demore a chegar o dia”.

Este post foi escrito por:

Filipe Isensee

Filipe é jornalista, especialista em jornalismo cultural e mestrando do curso de Cinema e Audiovisual da UFF. Nasceu em Salvador, foi criado em Belo Horizonte e há oito anos mora no Rio de Janeiro, onde passou pelas redações dos jornais Extra e O Globo. Gosta de escrever: roteiros, dramaturgias, outras prosas e alguns poucos versos estão em seu radar.

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